Enigmas das Laureaceaes
Dentre as várias famílias de plantas estudadas por Gottlieb,
Lauraceae foi sem dúvida a que recebeu maior atenção. Por essa razão foi certa
vez chamado de "The
man of Lauraceae". Muitas foram as suas contribuições nesse assunto,
desde os tempos em que trabalhava na indústria, na qual os principais produtos
– linalol
e acetato de linalila – eram obtidos do óleo essencial de pau-rosa,
até quando ingressou no meio acadêmico. Não foi por acaso que as primeiras
substâncias que tiveram suas estruturas totalmente caracterizadas por ele, em
colaboração com Walter Mors e Carl Djerassi, foram a anibina
e a 4-metoxiparacotoína, ambas isoladas
da madeira do pau-rosa. Inúmeras outras substâncias, algumas inclusive
pertencentes a novos grupos, como as pironas e as neolignanas, foram isoladas e
identificadas pelo grupo de Gottlieb. As Lauraceae que acompanharam Gottlieb
durante toda a sua trajetória, tiveram muitos aspectos ecológicos,
sistemáticos, evolutivos e geográficos, elucidados
por seu grupo.
No entanto, alguns dos trabalhos iniciais, merecem ser destacados
pois fazem parte da história da química de produtos naturais brasileira, na
verdade constituem um capítulo da própria história do país.
O enigma do óleo de sassafrás
O óleo de sassafrás oficinal norte-americano obtido pela
destilação da madeira de Sassafras albidum, espécie de Lauraceae que não
ocorre na América do Sul, é rico em safrol,
substância usada na indústria de dentifrícios. Durante muitos anos, desde 1939,
o óleo de sassafrás brasileiro, extraído da madeira de Ocotea pretiosa
(Lauraceae) localizada no Vale do Itajaí em Santa Catarina, foi exportado
devido ao grande teor desse constituinte odorífero. A grande demanda por essa
importante matéria prima, desencadeou uma intensa busca pela espécie de
sassafrás em outras regiões do país. Foi quando começaram a surgir graves
problemas, pois verificou-se, com grande espanto, que as madeiras de Ocotea
pretiosa proveniente de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, não
apresentavam o característico aroma de safrol, mas sim de canela. O estudo da
composição química desses óleos essenciais revelou que metileugenol
(bouquê de cravo) era o seu principal componente, e que safrol estava ausente.
No entanto, segundo análises morfológicas (incluindo anatomia da madeira) não
havia dúvidas de que tratava-se da mesma espécie. Portanto, O. pretiosa
de Santa Catarina, de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais eram
indistintas morfologicamente.
Até 1924 acreditava-se na invariabilidade da química de uma
espécie. Somente com os trabalhos pioneiros dos australianos Penfold e Morrison
sobre a variação da composição do óleo essencial de diferentes indivíduos de Eucalyptus dives, surgiu o conceito de “formas ou
variedades fisiológicas”. Parecia evidente para Gottlieb, Magalhães e Mors que
o sassafrás brasileiro tratava-se de um caso desse tipo. Esse foi o primeiro
registro de variação geográfica (química diferente para uma mesma espécie
localizada em diferentes regiões geográficas) para uma espécie brasileira.
Decifrada parte do enigma, faltava ainda responder a uma questão:
O que causava o odor de canela na madeira do sassafrás encontrado em São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais?
Esse aroma, que era muito semelhante ao da “canela do Orenoco”
(Humboldt) ou “casca preciosa”, uma outra Lauraceae da Amazônia classificada
como Aniba canelilla, nos leva a uma outra história.
O enigma da terra da canela
“Por volta de 1541, os
irmãos Pizarro, saturados de sangue e de metais preciosos, ouviram uma história
fantástica: existiria, na encosta oriental dos Andes, uma Terra da Canela.
Imediatamente enviaram tropas, sob o comando de Gonzalo Pizarro,
Andes abaixo à procura desta preciosa especiaria. Encontraram, assim nos conta
a história, canela, porém a árvore não era encontrada facilmente em lugar
nenhum. Vagarosamente, a tropa, faminta e dizimada por doenças, perdeu o
interesse. Por fim, um grupo construiu uma embarcação, com a qual desceu
inicialmente o rio Napo em busca de víveres. Sem possibilidade de poder
retornar por força das correntezas, ou sem vontade de continuar sob o jugo dos
Pizarro, chegou até o Oceano Atlântico.*”
Essa desastrosa expedição, a primeira do homem branco à Amazônia,
não encontrou a Terra da Canela. Apenas em 1800 os naturalistas Humboldt e
Bonpland descobriram no Monte Canelillo, a provável canela amazônica, ou
“canela do Orenoco” ou “casca preciosa”, a Aniba canelilla. Uma espécie de Lauraceae diferente
de Cinnamomum zeylanicum, a verdadeira canela asiática que não existe
nativa na América.
Após quase cem anos dessa descoberta, em 1893, o óleo essencial de
A. canelilla foi estudado pelos químicos da indústria alemã Schimmel
& Co., que com grande surpresa não encontraram a substância que confere o aroma
de canela à espécie asiática, o aldeído
cinâmico. Tentaram, assim como outros químicos, determinar a estrutura do
constituinte odorífero da canela brasileira, mas não obtiveram sucesso. Mas
afinal, qual era essa substância?
O enigma somente foi resolvido em 1959, graças aos esforços de
Otto e Mauro, que descobriram
nesse óleo essencial, além de metileugenol
e eugenol,
uma substância raramente encontrada na natureza, responsável pelo cheiro de
canela, o 1-nitro-2-feniletano.
Esse foi o primeiro
registro da presença de um nitro derivado em óleo essencial, um dos poucos
compostos naturais contendo esse grupo funcional.
A caracterização dessa nova estrutura, realizada da maneira usual
da época, exigiu árduas reações de degradação química, e esbarraram em um outro
impasse. Qual era o mecanismo de formação do ácido cianídrico proveniente do
nitrofeniletano natural? Após várias tentativas infrutíferas, a resposta surgiu
como uma inspiração. Ao erguer a taça de champanhe para um brinde ao noivado do
colega Ben Gilbert, um raio de luz atravessou a taça de Otto, que vislumbrou
naquela faísca brilhante o mecanismo da reação que faltava.
Adicionalmente, a dupla
comprovou que o aroma de canela da madeira de Ocotea pretiosa
(sassafrás oriundo de SP, RJ e MG), também era devido a esse nitro derivado,
resolvendo assim mais um mistério. Posteriormente, eles publicaram interessantes
especulações a respeito dos problemas filogenéticos dessas espécies de
Lauraceae brasileiras.
Alguns anos mais tarde, o grupo de Gottlieb em
colaboração com Plutarco Naranjo, estudou uma espécie do Equador, Ocotea
quixos. Descobriram que o aroma de canela dessa madeira, assim como na
canela asiática, era causado pelo aldeído
cinâmico e não pelo nitro-derivado das espécies brasileiras.
Gottlieb realizou vários outros trabalhos com essas espécies de
Lauraceae, tanto com respeito ao seu óleo essencial quanto aos seus
constituintes fixos, como neolignanas.
O Enigma da Terra da
Canela e do Óleo de Sassafrás
Espécie |
Nome Popular
|
Localização |
Aroma |
Constituinte odorífero |
OBS |
Sassafras albidum |
óleo de sassafrás
norte-americano |
América do Norte |
safrol |
safrol |
|
Ocotea pretiosa* |
óleo de sassafrás
brasileiro canela sassafrás |
Santa Catarina
(Brasil) |
safrol |
safrol (mais de 84%) |
|
Ocotea pretiosa* |
óleo de sassafrás
brasileiro canela sassafrás |
São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais (Brasil) |
canela |
1-nitro-2-feniletano |
predomínio de
metileugenol e ausência de safrol no óleo essencial |
Aniba canelilla |
casca preciosa canela do Orenoco |
Amazônia (Brasil) |
canela |
1-nitro-2-feniletano |
ausência de
cinamaldeído |
Ocotea quixos |
ishpingo |
Equador |
canela |
aldeído cinâmico |
ausência de
1-nitro-2-feniletano |
Cinnamomum zeylanicum |
canela |
Ásia |
canela |
aldeído cinâmico |
ausência de
1-nitro-2-feniletano |
* Primeiro exemplo de variação fisiológica observado para espécies
brasileiras.
fonte: http://www.prossiga.br/ottogottlieb/